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domingo, 22 de fevereiro de 2015

aguapés


As duas edições que tenho

Jhumpa Lahiri é descanso para a mente. Mesmo sendo tristes, algumas demasiadamente como "O xará" (que foi para o cinema), sempre me sinto bem depois de ler ou reler suas histórias. Fui apresentada ao seu primeiro livro, a coletânea de contos "Intérprete de Males", em 2001 por um amigo indiano. De lá para cá, foram mais três livros publicados. Em todos, ela aborda a tradição indiana, o amor, a família, os sonhos e os ressentimentos, seja na própria Índia ou em algum lugar dos Estados Unidos ou Europa. E quando no papel de imigrantes, seus personagens têm que lidar com a alteridade. Muitos têm dificuldade para aceitar o costume local, ao mesmo tempo em que seus valores são vistos como antiquados. Aos poucos, porém, um e outro se  fundem e criam novas versões da cultura, da comida, da música, do idioma, de si mesmos. 

Nascida em Londres e filha de indianos, hoje vive na Itália. Já comentou que quer que os filhos vivenciam o papel de estrangeiros. Situação que sabe narrar muito bem. Eu venho de família de imigrantes, dos dois lados. Tive avós que, com ar nostálgico, relatavam momentos em suas terras. Fecho os olhos e vejo minha avó paterna a percorrer os vastos campos portugueses, indo para alguma festa na aldeia que morava. Ou meu pai, ainda bebê, passando muito mal no navio que o trouxe ao Brasil. Ou ainda meu avô materno escrevendo meu nome em kanji. O sentimento que percebia em cada conversa e a vontade de enaltecer seus próprios traços são os mesmos que encontro nos quatro livros de Jhumpa. 

A cultura indiana é recorrente em suas obras
Não me importo que todos tenham a mesma temática, tampouco que ela utilize metáforas piegas, como "o que parecia impossível acontecera. A montanha se fora. No lugar havia agora uma pedra pesada, como algumas pedras profundamente enterradas quando cavava a areia da praia. Grande demais para remover, a superfície parcialmente visível, mas de contornos desconhecidos." Pode até parecer prosa poética pobre, mas perdoo e continuo a ler. Sei ainda que não é a única a tratar desses temas, presentes em outras escritoras indianas, como Chitra Banerjee Divakaruni, e na obra do afegão Khaled Hosseini, apenas para citar alguns exemplos. O que diferencia Lahiri é a sensação, sempre agradável, depois da leitura.

"Aguapés", ou "The lowland" no original, é seu segundo romance, lançado por aqui durante a Flip no ano passado. Tem os mesmos elementos citados anteriormente com a adição de referências políticas e do movimento naxalista, que teve sua origem em 1967 em Naxalbari, Bengala Ocidental. Seus integrantes são considerados comunistas extremistas e seguem Mao Tse Tung. Massacres, atentados e perseguições fazem parte da história grupo, que ainda permanece ativo. A morte de seu fundador em 2010, Kanu Sanyal, que aparece no romance, foi noticiada pelos jornais brasileiros. Esse clima permeia toda a obra que fala do afeto entre dois irmãos: Subhash e Udayan. Apesar de unidos, após a faculdade passam a ter expectativas diferentes. Um vai para os Estados Unidos. O outro fica na Índia com seus propósitos revolucionários. Suas escolhas vão determinar a vida dos demais personagens, sobretudo as de Gauri e Bela. Não preciso dizer mais. O enredo é previsível, os motes já foram utilizados outras tantas vezes. Mas o sabor continua agradável, afinal, não queremos sempre mais daquilo que apreciamos?

Leia também: http://www.livrosemotivos.com.br/2012/02/india-e-bem-mais-perto-do-que-parece.html

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

histórias de paris

"O caráter dos franceses, os problemas de documentação, os compatriotas e o gueto, a solidão não é a mesma aqui e lá, a saudade como detergente, a saudade como corrosão, a saudade como consolo."

"- Como nos arrebentaram.
- É.
- Nos quebraram.
- É.
- Você está decidida?
- Estou.
- Eu não sei, não sei.
- Por quê?"


Mário Benedetti foi um dos exilados durante a ditadura uruguaia nas décadas de setenta e oitenta. E é essa experiência que inspira os quatro contos de "Histórias de Paris", que embora tenham sido publicados em anos e livros distintos se complementam nesta edição que li, ilustrada pelo argentino Antonio Seguí. Teria sido melhor ler sem os desenhos, que deram um tom cômico que não combinou com o texto. 

A narrativa é objetiva, dura. Talvez reflexo do medo, da opressão, da solidão. Mas ao mesmo tempo nos leva a sentir a mesma nostalgia que os personagens, todos fictícios. Os contos mostram que muitas vezes a saudade dos planos, que nunca aconteceram, pode ser ainda maior do que o que foi vivido.

No primeiro, "Geografias", dois amigos disputam um jogo que consiste em ver quem mais se lembra dos detalhes de Montevidéu, cidade natal de ambos. Enquanto discutem sobre determinado monumento, reencontram a ex-namorada de um deles. Mas o que poderia ser alegre, apenas os lembra de que não há mais esperanças.

O que mais gostei foi o segundo, "Cinco anos", que tem um pé no realismo fantástico. Ou apenas sugere que tudo é tão rápido que quando nos damos conta já acabou. Principalmente quando estamos a sonhar. O texto traz um casal que se conhece no metrô parisiense. Os dois entram no último trem e ao desembarcarem não conseguem cruzar o portão da estação antes que ele fosse fechado. Perdem a última saída e varam a noite em um banco na plataforma. Talvez seja a história que ele, Raúl, busca para o livro que quer escrever. Cinco anos se passam e nos supreendemos com o desfecho.

O próximo, "O hotelzinho da rue Blomet", traz outro casal que não se acostumou à aparente liberdade, e que resolve se reencontrar no mesmo hotel que ficou anos antes. Em uma época em que ambos eram descomprometidos. Com a política e com outras pessoas. A incerteza dá o tom ao sucinto diálogo entre eles.

O último, "Só por distração", é o único que não tem Paris como cenário. Fala de um exilado que não se vê como tal e por causa da sua distração sempre se espanta com os lugares em que vai parar. Chega a ser engraçado. Aí, sim, se encaixa as ilustrações de Seguí. "Enquanto mastigava com fruição notou que estava escostado numa coluna que lembrava as colunas de mármore pantélico que vira em alguma foto do Paternon e, claro, a partir dessa associação percebeu que de fato estava na Acrópole. Sim, era terrivelmente distraído." Fiquei com vontade de ler mais sobre a ditadura em nosso continente. Pesquisa já ;-)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

vermelho amargo


No começo da leitura de "Vermelho amargo", do mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, achei que estava diante de outra versão da epifania de Proust a partir de sua madeleine. Mas não. O livro me remeteu, e muito, a "Éramos Seis" (1943), de Maria José Dupré, o mais triste que já li.

Isso porque, logo no início, o narrador em primeira pessoa fala da fatia fina de tomate que a madrasta diariamente coloca nos pratos dos enteados. A mãe morreu e deixou seis filhos. Eram oito, junto com o pai e a nova mulher. Um tomate tem que servir a todos. Aos poucos, os filhos saem de casa e as fatias vão ficando mais grossas. São sete, seis, cinco, o autor pontua a cada perda. Até que um tomate é suficiente para as duas refeições dos que ficaram. E é essa fruta que sucinta todas as lembranças de sua infância. Ele fala muito da mãe, da saudade dos poucos anos que passou com ela, dos pequenos cuidados diários, pois são neles que residem o que mais sentimos falta. É lindo e doloroso quando ele diz "se um de nós caía, a dor doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no degrau da escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui! Há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor."

Fala ainda das manias dos irmãos, que assim como ele precisavam encontrar formas para lidar com a ausência materna. Tinha um que comia vidros, outra que só tricotava. Remói a indiferença do pai e, claro, a existência dos tomates. Bem vermelhos, mas amargos em suas recordações. 

O livro veio em uma bela edição, que somada à prosa poética possibilita bons momentos de melancolia. Mas aquela melancolia necessária para acalmar, suspirar e pensar. Pode-se dizer que trata-se de uma autobiografia poética, nas palavras do próprio autor, que morreu em 2012 aos 67 anos, um ano depois de lançar a obra: "o livro foi feito do que vivi e do que inventei." Não é assim, afinal, nossa própria vida?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

o segredo de joe gould

Este livro, que é da minha irmã, estava comigo há tempos. Mas só agora resolvi lê-lo. E o fiz em poucas horas, arrependida por não ter me debruçado sobre ele antes. "O segredo de Joe Gould" é fascinante. Não sei dizer se pela história de vida do homem do título ou pelas palavras de quem a traduziu tão bem, o jornalista Joseph Mitchell.

São dois textos publicados em datas distintas na revista The New Yorker, que ainda hoje segue com o estilo do qual é uma das responsáveis, o jornalismo literário, que, entre outros, também destacou Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote.

Joe é um andarilho, vive nas ruas e nos albergues de Nova York. Carece de recursos, de bons dentes, de comida. Mas tem amigos que conquistou com sua prosa, muitas vezes prolixa, e pela grande obra que está a escrever, um livro que se propõe a contar a história oral da humanidade. Por meio dessas pessoas, ele mantém o Fundo Joe Gould, esmolas que o ajudam a sobreviver e a manter o vício pela bebida. Formado em Harvard, abandonou casa e estabilidade para seguir com seu ambicioso projeto. Mesmo assim, e maltrapilho, não deixou de frequentar as festas da alta sociedade. Vez ou outra solta algum pensamento filosófico, como "Eu consideraria o mais são dos homens aquele que melhor compreende o trágico isolamento da humanidade e prossegue calmamente na busca de seus propósitos essenciais." 

Tal figura atraiu a atenção do jovem jornalista, na época, Joseph Mitchell, que durante meses seguiu os passos de Joe, sentando com ele em bares nas madrugadas nova-iorquinas para ouvir o que ele tinha a dizer. O resultado foi um belo perfil publicado em 1942, "O professor gaivota", já que Joe se dizia interprete dessa ave. Anos depois, em 1964, Mitchell decide publicar outro texto, ainda mais profundo, que seria o seu derradeiro.

A edição que li traz posfácio de João Moreira Salles, "O homem que escutava", no qual o brasileiro faz o perfil daquele que viveu para fazer perfis. Nele descobrimos que Joseph Mitchell poderia levar meses, e até anos, para terminar um artigo, sem ser pressionado pela revista. Aliás, depois do último texto, continuou a frequentar a redação da revista e a receber seu salário sem publicar uma linha. Enfim, o livro todo é uma aula de jornalismo e das características que fazem o bom jornalista: curiosidade, não ignorar o que parece ser pequeno, ir além da notícia e ter paciência. No caso de Mitchell, "dom que se traduzirá numa obra construída em torno da escuta atenta e constante." Para entender. Para tornar extraordinário o que aparentemente é banal. Leitura obrigatória.

Trecho

"Gould empurrou as revistas e os cadernos em minha direção. 'Leve e leia', disse.
Lá fora, na calçada, combinamos nos encontrar novamente no sábado à noite. 'Mas não no restaurante', Gould advertiu. 'Sempre me dei bem com os balconistas e as garçonetes. Eles brincavam comigo, e eu brincava com eles. Mas parece que viraram a cara para mim.' Seu rosto assumiu uma expressão de profunda preocupação, um ar aflito, e por alguns instantes ficou em silêncio, pensativo. Depois encolheu os ombros, como se com isso tirasse o assunto da cabeça, mas evidentemente o assunto não se deixou tirar, pois em seguida ele o retomou. 'Nos últimos anos muita gente tem virado a cara para mim', falou".

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

o homem que vive

Comprei “O homem que vive” por dois motivos. Primeiro, o autor fez parte do meu universo acadêmico. Li seus textos durante as aulas de Comunicação e Semiótica. Segundo, e talvez o mais importante, a neve. Toda a ambientação da narrativa se dá durante invernos rigorosos. Mas nem este tema, que muito me atrai, foi suficiente para eu gostar da leitura. 

Lembro que na faculdade eu tive que fazer o resumo de um de seus livros, “Semiótica, Informação e Comunicação”. Na ocasião, eu escrevi que Teixeira Coelho era um pouco confuso em suas definições. Ora dizendo uma coisa, ora outra. A professora ficou enfurecida. Mas eu sobrevivi e tenho a mesma opinião sobre este seu romance.

A narrativa, em terceira pessoa, transita pelos pensamentos de Buel. A exemplo do autor, que até pouco tempo foi curador do Masp, está envolvido com a arte. Tanto que suas reflexões estão sempre relacionadas a alguma exposição ou pintura. Começamos a acompanhá-lo quando chega a São Paulo em um dia bem atípico para nossos padrões tropicais. Estava nevando muito. A avenida Paulista estava toda branca. O curioso é que os paulistanos não encaravam isso com espanto. Apenas Buel parecia enxergar a anormalidade. Ele voltou para encontrar seu anjo, a Valéria. Enquanto está no hotel esperando o tal encontro, ele relembra várias passagens da vida. Sempre no inverno, e sempre com uma nevasca fora do comum, seja em Paris, Londres, Berlim, Munique ou outra cidade que morou ou visitou. Valéria aparece sempre como uma sombra. Ela não tem muitos diálogos e não sabemos o que pensa ou quem é exatamente. Aliás, todos os outros personagens são insignificantes diante do individualismo de Buel e seus devaneios em torno do significado de relacionamento, da arte e da sua própria felicidade.

Alguns excertos são bem interessantes, porém, o conjunto é monótono. Por vezes parecido com o estilo do cineasta centenário Manoel de Oliveira. Até consigo ver a adaptação para as telas. A leitura vale pelas referências. Pode agradar aos que se entusiasmam com a prosa poética. Frases curtas. Muita metáfora e digressões. Sabe quando utilizamos a escrita para tentar amenizar a dor? Quando rabiscamos palavras que somente para nós serão compreensíveis? Que somente para nós remeterão ao momento que queremos tirar do coração e deixar somente no papel? Pois é com esse sentimento que fiquei ao ler a vida de Buel. Contudo, concordo muito quando ele diz: “a neve torna tudo próximo, aconchegante. Nunca mudaria de opinião sobre a neve. Aconchegante." Valeu por esfriar um pouco o verão mais quente que já vivi.

Trechos

"Buel jamais conseguira dormir bem numa noite de verão, menos ainda ter um sonho numa noite de verão - sonho que, por ser sonhado numa noite de verão, supostamente é um sonho bom. Numa noite de inverno, sim, conseguia dormir bem. Mas, sempre diziam assim, sonho de uma noite de verão, como se fosse uma coisa boa."

"Valéria disse então, naquela sala, que gostaria de vê-lo sempre feliz, ela disse, a boa alma. O que Valéria poderia entender por felicidade? Talvez uma casa e duas pessoas morando dentro. Talvez tomar conta dele. Buel não queria que tomassem conta dele. Alone together, como diz o título da composição de Dexter Gordon. Alone together, Buel estava alone together naquele momento. Perfeito.

"Buel estava farto dos que pensavam no bem do povo e dos que defendiam os benefícios para o povo e em nome do povo. Lá como aqui." 

"Entre o cinza do céu e o cinza dos prédios da Avenida Paulista praticamente não havia diferença de tonalidade, e o céu baixo eliminava ainda mais toda a diferença ao abolir qualquer sensação de profundidade espacial. Parado na calçada, em meio à neblina, Buel não tinha horizontes. Lembrou-se de um artista dizendo que a arte é como uma neblina que desce sobre as pessoas e as envolve densamente, de modo que o significado que a obra possa ter é irrelevante e se materializará um dia, muito depois, se for o caso."