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domingo, 27 de julho de 2014

o homem do bosque


O livro de Scott Spencer tem um toque de ‘Crime e Castigo’, de Fiódor Dostoiévski. Mas sem a mesma complexidade psicológica. Em determinados momentos me remeteu ainda ao filme 'Match Point' (2005), de Woody Allen. No romance russo, o protagonista Raskólnikov mata duas pessoas e tem que lidar com a culpa pelo crime que cometeu. Entregar-se ou não? Nós somos lançados ao seu interior e sentimos na pele sua angústia e o seu estado febril. Foi um dos melhores livros que eu li. A estrutura narrativa de “O homem do bosque”, todavia, é bem mais simples. No filme, que passeia pelo mesmo 'bosque' dostoievskiano, o assassino vai contar com a sorte, o tal 'ponto final'.
Já o enredo de Spencer, que intercala a visão de diversas pessoas, fala de assassinato não premeditado. Após alguns problemas que tem para receber o pagamento de um cliente, o marceneiro Paul Phillips resolve espairecer no bosque perto de Nova York. Lá vê Will Claff espancando um cachorro. Aliás, é pelo motivo que levou esse homem a bater no cão que começa o livro. Indignado, revida os golpes e, sem se dar conta da sua força, mata o cara. Assim como no livro de Dostoiévski, não há testemunha e ele vai embora sem ser visto. Leva com ele o cão, que chama de Shep. Mas a culpa e o medo de ser preso o perseguem. Tudo isso põe em cheque a relação que tem com Kate Ellis, antes alcoólatra, hoje famosa escritora amparada na religião. Também é algo que vai comprometer seu estilo de vida, mais solto, mais liberto dos prazeres mundanos. O romance, escrito em 2010, passa-se bem na transição do século XX para o XXI e tem como pano de fundo o boom do milênio, o Y2K, que na história é apenas “uma tentativa desesperada de encontrar um significado, uma narrativa previsível.”  Há muitas passagens cansativas, sobretudo no que diz respeito à Kate. Mas o desfecho, que fica em aberto, vale a leitura, assim como a relação que Paul tem com Shep. E que rende comoventes cenas.  

Frases

Aceitação unânime é sinal de mediocridade.”

“Anos de serviço lhe ensinaram que o caminho para o inferno é pavimentado com palavras adicionais. Pessoas que sabem como o mundo funciona falam o mínimo possível.”
“Coisas que achamos que vão nos perturbar para sempre perdem seu poder com o passar do tempo.”
“A infelicidade é como uma vela queimando dentro das pessoas; seu odor está sempre presente no ar.”

sexta-feira, 18 de julho de 2014

fahrenheit 451


“Sempre se teme o que não é familiar.”

Os livros estão banidos e todos que forem encontrados portando este objeto terão a casa e seus exemplares queimados. Afinal, “o livro é uma arma carregada na casa vizinha.” Então, a ordem é “queime-o. Descarregue a arma”. Esta é a tarefa dos bombeiros de ‘Fahrenheit 451’, de Ray Bradbury. O título é uma alusão à temperatura na qual o papel queima. Como desculpa, o capitão da corporação diz que os livros eram muito complexos. O aumento da população pede coisas mais rápidas, sucintas, fáceis de serem digeridas.

O país está em guerra, mas ela serve apenas como pano de fundo, pois a população não parece preocupada com a possível destruição. Há o consenso de que todos são felizes. ‘Eu trabalho e tenho lazer, pronto, é o que basta’. O questionamento é visto como comportamento antissocial. Quem vai por este caminho é eliminado. Por aí já dá para saber que estamos numa distopia. Este tipo de romance está, geralmente, relacionado ao controle social e à ficção científica. Há muitos elementos parecidos com o emblemático ‘1984’, de George Orwell e seu grande irmão.

O protagonista é o bombeiro Guy Montag. Ele faz seu trabalho sem pensar, como todos. Até que conhece uma garota que o faz refletir sobre sua atividade. Ela vem de uma família diferente. Seus pais, tios, isso mesmo, conversam. Pensam. Gostam de apreciar o que está ao redor. As famílias ‘normais’ são como a de Montag. Sua esposa, Mildred, vive imersa na realidade artificial. O mundo resume-se aos programas projetados nas telas que eles têm na sala. Os ouvidos também são literalmente tampados com uma espécie de fone de ouvido, as tais radioconchas,‘rádios firmemente ajustados, e um oceano eletrônico de som, música e vozes, música e vozes’. Tudo é entregue do jeito que as pessoas devem e podem absorver. Nada além, nada aquém.

Lembrou-me bastante “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, “todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio”. Lá todos também são ‘felizes’. Já possuem tudo o que precisam. E quando confrontados, apenas ‘piscam o olho’, sem entender o que acontece. Da mesma forma, piscam os olhos os personagens de Bradbury. Montag surge como o ‘super homem’. Contrariando a ordem, ele esconde alguns livros, que serão farejados pelo Sabujo, o cão robô farejador. A partir daí, resta o refúgio junto com os demais ‘malucos’.

O livro, escrito em 1953, é uma projeção do que seria a década de 1990. No posfácio, o autor comenta sobre o processo criativo, que começou com o conto ‘Bright Phoenix’, evoluiu para o livro e culminou com a adaptação para o teatro. No último, ele reviu e detalhou melhor algumas situações. O romance foi ainda para o cinema sob direção de François Truffaut. Tudo muito atual. Tudo muito presente na nossa sociedade. Enfim, vamos colocar nossas ‘radioconchas’ e cantar, com todo mundo, a música do dia.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

a vida do livreiro a. j. fikry

“A maior parte dos problemas das pessoas seria resolvida se dessem mais chances às coisas.” 

Eu me apaixonei pela cidadezinha de “A Vida do Livreiro A. J. Fikry”, romance da norte-americana Gabrielle Zevin. Fiquei com vontade de ficar lá, perdida neste lugarejo no qual só conseguimos chegar com dois trens e um barco. Isso quando não é inverno e as águas estão congeladas. E é neste fim de mundo que mora o livreiro do título. A esposa, que foi escritora, morreu num acidente de carro. Juntos abriram a Island Book, única livraria da remota Alice Island. Amargurado pela perda, tem fama de ranzinza. Logo no início, trata muito mal a representante que lhe traz as novidades do catálogo da editora para a qual trabalha. Despeja nela os tipos de livros dos quais foge. Ou seja, praticamente todos. Só se interessa por clássicos e bons contos. A coitada sai cambaleando. Mas tudo muda quando depois de beber até desmaiar, deixa à vista seu raro exemplar de ‘Tamerlane and other poems’, de Edgar Allan Poe. Embora não seja colecionador, o que detesta, conseguiu o livro em um destes ‘família vende tudo’. Guarda-o para quando decidir ter outra vida. Mas o livro some. A partir daí sua rotina e humor mudam. Ele faz amizade com o delegado Lambiase, ganha uma filha, a Maya, e passa a considerar Amelia, a maltratada representante, além dos títulos que ela apresenta. Fikry, mesmo quando é mal-humorado, nos rende boas risadas. Embora não seja pseudointelectual, finge ter lido os sete volumes de ‘Em busca do tempo perdido’, de Proust. Ele também gosta de correr. Em determinado momento, por não saber o que fazer com as chaves de casa na hora da corrida, resolve simplesmente deixar a porta aberta. Quem corre, vai entender o transtorno que esse objeto pode causar na hora do exercício. O livro é recheado de referências literárias, sobretudo de contos. A cada abertura de capítulo, nova sugestão, que sempre está associada ao momento dos personagens. Para ser lido sem interrupções, de preferência no inverno com tardes ensolaradas.

As capas nos Estados Unidos e na Inglaterra