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terça-feira, 10 de abril de 2012

as intermitências da morte

Há quem diga que precisamos sempre pensar na morte. Já que vamos morrer, temos que aproveitar bem os "últimos dias". Logo me lembro da música de Assis Valente “E o mundo não se acabou”, que diz: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar... Acreditei nessa conversa mole... E sem demora fui tratando de aproveitar. Beijei na boca de quem não devia. Peguei na mão de quem não conhecia.” E para desespero de todos, “o tal do mundo não se acabou.”

Em “As Intermitências da Morte”, do escritor português José Saramago, não foi o mundo que “não se acabou”, mas a morte que não chegou. Motivo: cansou de ser odiada pelos humanos e resolveu mostrar o quanto é importante. Logo no primeiro parágrafo do livro, Saramago nos explica a situação:

“No dia seguinte ninguém morreu.”

“Passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.”

Todos celebram num ímpeto. Afinal, sobrevivem a acidentes, doenças crônicas e demais males que teriam levado o cidadão desta para melhor. Contudo, o que parecia ser uma dádiva, passa a incomodar. Os enfermos se multiplicam, lotam hospitais, estorvam os familiares e, claro, sofrem. Como não há morte, a dor torna-se eterna.

Governo e igreja confabulam. Enquanto uns pensam no que será feito da previdência social, outros discutem que não há mais vida após a morte. Assim sendo, qual seria a razão da religião? Filósofos e economistas também lançam seus pensamentos diante da grave situação. Enquanto isso, as funerárias padecem com o desaparecimento de seu público-alvo.

Passado algum tempo, descobre-se que a greve atinge apenas aquele país. Do outro lado da fronteira, é possível morrer. É só atravessá-la para que a pessoa possa, enfim, descansar em paz. Como tudo o que é fácil pode ser complicado, a burocracia dificulta a vida (ou morte) dos moribundos. Eis que surgem as brechas, os oportunistas e a máfia, que passa a dominar o esquema da travessia. Neste trecho temos grande ironia de Saramago em relação à política e à sociedade. Aliás, como em todas as suas obras, há trechos hilariantes. Você “morre de tanto rir”.

Do outro lado, a morte assiste a tudo de camarote. Até que muda de estratégia e pede para que uma carta sua seja lida em rede nacional de televisão. O país para e ouve o que ela tem a dizer. O que ela não previu é que se apaixonaria por um humano. E ninguém morre enquanto a morte sofre por amor. Li o livro há mais de seis anos, mas ele ainda está muito presente na minha mente. Imperdível.




E o mundo não se acabou, na voz de Adriana Calcanhotto

2 comentários:

  1. olá Kátia, que leitura boa, e que curiosidade deste livro, assim que eu puder farei de tudo pra lê-lo. Abraço fraterno. Aline Marques

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