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segunda-feira, 26 de março de 2012

uma coisa, aquela coisa

No último sábado, com o propósito de aprender mais sobre o universo dos contadores de histórias, assisti a uma bela apresentação do professor e filósofo Gabriel Perissé. E, por meio dele, conheci outro filósofo, o espanhol Alfonso López Quintás, e seu conceito para âmbito e encontro. Segundo o pensador, há dois níveis para as “coisas”. O nível um é quando elas são “simplesmente coisas”: uma tábua que não nos remete a nada, uma pessoa com a qual não criamos vínculos.
O nível dois é alcançado quando há encontro. Para Quintás, encontro pressupõe interação. É o local das perguntas, das respostas e do interesse mútuo. Para exemplificar, Perissé cita o casamento em que o diálogo é substituído pela “falta do que dizer”.  Para ele, a única “coisa” que não pode faltar nesse tipo de relação é a conversa. “Pode faltar tudo: dinheiro, casa, sexo, mas se não houver diálogo, a união sucumbe.” Ou seja, não há mais encontro. Por isso, dá um conselho: “se não tiver nada interessante para dizer, invente.” Faz parte do encontro a criatividade para tornar as relações mais agradáveis e saudáveis. “Contar histórias é um ato filosófico porque você tira a névoa da vida”, diz o professor.
E é desse encontro que surge o âmbito, o nível dois das “coisas”. É o local das ideias, da criação, dos sentidos. Um perfeito exemplo de âmbito está na música “Naquela mesa”, de Sérgio Bittencourt. Lá, o compositor transforma uma mesa na metáfora das boas lembranças que tem do seu pai, Jacob do Bandolim.
“Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre
O que é viver melhor.
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória
eu guardo e sei de cor.
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente
O que fez de manhã...”

Ele fala das reuniões, dos bate-papos, dos amigos em torno de uma mesa. Encontros que faziam todos interagir, todos criarem e compartilharem. A partir do momento em que Bandolim morre, fica apenas a mesa, que volta a ser uma “coisa nível um” sem sua presença. Morre também o pronome demonstrativo “naquela”, que dá lugar ao pronome indefinido, como se dissesse: “agora é uma mesa qualquer.”
“Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala
No seu bandolim...”

Mas quando retoma as lembranças do pai, a mesa volta ser “aquela mesa”. Ela torna-se um memorial:

“Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele
Tá doendo em mim.”

O âmbito é o sinal de presença, o verdadeiro entrelaçamento de iniciativas que nasce de um encontro sem egoísmo. Quantas coisas descartáveis não temos na vida? E para quantas pessoas não somos nós essas coisas descartáveis? Conte uma história, dê significado e crie âmbitos.

Números pares, impares e idiotas 
Perissé também nos apresentou ao livro infanto-juvenil “Números pares, impares e idiotas”, de Juan José Millás e Antonio Fraguas “Forges”. Em um dos contos, o número 1 quer chegar a ser o 9, na visão dele superior, o ápice da categoria. Para tanto, vai cursar a faculdade de “novelogia”. Descobre, porém, que para chegar a ser 9 precisa, antes, ser 8. E vai para a faculdade do 8. Percebe, da mesma forma, que para ser 8, precisa ter sido 7. E vai estudar para ser 7. E para ser 6. 5. 4. 3. 2. Por fim, descobre que não passa mesmo de 1. Conforma-se e dedica-se a estudar o que é. Com o tempo, vai aprendendo a ser o 2, o 3, o 4, o 5, o 6, o 7, o 8. E, inclusive, o 9. Mas decide continuar sendo o 1, que é o primeiro, afinal.
Moral da história: o âmbito é, sobretudo, o vínculo entre eu e eu mesmo. Bons encontros para todos.

Uma tábua, aquela tábua

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Pois é, Celso! Esqueci de falar sobre o "zero desacompanhado", que também aparece no texto. Lá pelas tantas, o número 1 o procura. Mas o encontro só o empurra para ser o "primeiro" mesmo ;-)

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