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terça-feira, 13 de dezembro de 2011

bolinha preta

“Corre! Segura. Ele está fugindo!”

“Nossa! Ele pulou o portão!”

“Fugiu!”

E lá se foi o cachorrinho preto e todo peludo subindo a rua da sua casa. Atrás dele, minha mãe e eu correndo. O cachorro faz o que mais temíamos: atravessa a avenida. Carros para todos os lados. Ele para e parece ficar à espera das donas. Mas quando nos aproximamos, torna a disparar. “Gugu, volte aqui.” Eu tropeço, ralo o joelho na calçada, mas insisto na busca.  O cachorro resolve atravessar a avenida novamente, sem olhar para os lados. Faço o mesmo. Freada brusca. Buzinas e o ziguezague do cão fujão.  Até que: “peguei!”

Voltamos para casa com um monte de pelo nos braços. Seguro-o pela barriga, as quatro patas para frente, língua para fora. Tudo isso aconteceu numa manhã. Estava me preparando para ir ao trabalho, quando o cachorro escapou escalando o portão.

Bolinha preta
A partir daí, essa cena foi constante. Tudo começou em 1995, quando vi na rua o filhote bem pequeno e todo peludo. Parecia uma bolinha de pelúcia preta. Pelo tamanho, passou facilmente pelas grades do portão da residência em que estava. Quando desci do carro para resgatá-lo e chamar os proprietários, um homem se aproximou.

“Seu cachorro está fugindo”, eu disse.

“Na verdade, ele não é meu. Apareceu aqui e eu o deixei no meu quintal.”

“Ah, não é seu.”

“ Não. Você o quer?”

“Quero!”

Pronto. Peguei o cachorro e fui para casa.

“Mãe, venha cá.”

Ela se apaixonou.

“Coitadinho, parece o Boomer”, comentou referindo-se ao cão que ficou conosco por oito anos e que havia morrido um ano antes.

Gugu conhecendo a nova casa

Na casa já havia a Tuti, de apenas quatro anos. Chorão, passou a dormir dentro de casa, hábito que se perpetuou para sempre.

“Esse cachorro é de raça”, disse o pai. Claro que não era.

Ganhou um nome:  Goober. O apelido, Gugu, foi consequência. Além desse também acumulou o de Negão, como era chamado pelo meu irmão.

Suas fugas eram um transtorno. Tanto que o portão ganhou grades que o impediam de pulá-lo. O mesmo valeu para as janelas dos quartos.

Mas todos curtiam vê-lo assim tão serelepe. Confesso que até houve muitos incentivos de nossa parte.  Além de saltitar, descobrimos outra paixão do Gugu: a bolinha. Ele vibrava toda vez que ouvia uma bola de tênis batendo no chão. Podia estar onde estivesse que vinha correndo e se posicionava na posição de goleiro. Defendia muito bem. E também driblava que era uma beleza. Meu pai era o mais entusiasmado com essa habilidade canina. Várias bolinhas apareciam em casa e todas, sem exceção, eram “comidas” após os “jogos”.

Foi crescendo e os pelos também. Cobriam toda sua carinha. Não dava nem para ver os olhos. E eles foram ficando cada vez mais embaraçados. Tudo isso levou a uma solução: tosa. Voltou parecendo um rato recém-nascido. Horrível. Quando meu pai o viu, disse, olhando para o cachorro: “o que é isso? Esse não é o Gugu. Pode jogar fora agora.” Acho que ele entendeu, pois se escondeu sob a pia da cozinha, tremendo. “Tadinho”. Mas, como todo cachorro, não guardou mágoas. Nem da tosa, nem do comentário. Pouco depois já estava pulando, correndo, pegando a bolinha e procurando por bichos na parede. Sim, bichos.

Certa vez apareceu uma lagartixa na parede da sala, logo acima do sofá. Eu mostrei para ele: “Gugu, pega o bicho. Olha o bicho.” Ele latia desesperado, querendo, de fato, pegar o animal. Subiu no sofá e de lá deu um pulo tão alto e a engoliu viva. Ainda ouço a bronca que levei do meu irmão. Merecidamente. Pobre, lagartixa. Não era para ter tido esse fim. 

Sempre que queria vê-lo pulando de um sofá para outro, eu apontava para a parede, no ponto mais alto, e indicava que havia um bicho: “olha o bicho”. Apontava vários pontos diferentes. O cãozinho corria, latia, rosnava. Pulava em todos os cantos procurando o tal bicho, que na maioria das vezes não existia. Apenas um pouco de diversão. Para mim e para ele. E essa era apenas uma delas - ressalto que nunca mais engoliu lagartixa ou qualquer outro bicho vivo. Havia também o pega-pega. Imagine uma pessoa correndo de uma extremidade a outra da casa com o cachorro? Eu recomendo. Não há mau humor e estresse que resista.

Ele dormia na cama, ou melhor, nas camas. Durante a noite saltava da cama dos meus pais para a minha ou para a dos meus irmãos. E pedia sempre um travesseiro. Afinal, se os donos dormem apoiando a cabeça assim, por que com ele seria diferente? Também gostava de se acomodar nos nossos pés. Durante a noite, acordávamos com um peso nas pernas. Era meigo.

Negão e Fábio

E os passeios? Esses eram sagrados. Não podia ouvir o tilintar da corrente que saltava, ria (sim, os cães riem), e saia em direção à porta. Adorava passear. E quem o levava sempre ouvia a pergunta “Ele fez tudo?” Acredito que não preciso explicar este trecho.

Gugu sofria com os ouvidos, constantemente estavam machucados e exigiam cuidados especiais. Os muitos pelos eram prejudiciais e nem sempre estávamos tão atentos a isso. Além da tosa, os ouvidos o levaram por muitas vezes até o veterinário. Havia, inclusive, um ritual de limpeza coordenado pela minha irmã. Ele odiava os fogos de artifícios. Finais de campeonato de futebol e festas de fim de ano o irritavam. Escondia-se atrás do sofá, debaixo da cama e em qualquer outro lugar onde pudesse se sentir seguro. Quando ouvia “é gol”, saia correndo.

Minha mãe dizia que ele achava que era “gente”, pois subia na cadeira e, literalmente, sentava-se à mesa. Todavia era educado. Não pegava nada além do que lhe era servido. E sempre com delicadeza e prudência. Cheirava com cautela todos os alimentos antes de ingeri-los.

Os anos foram passando e a idade pesando. Cambaleava. Já não era tão ágil para subir nos móveis. Já havia desistido da cadeira. Até comprei um puff para fazer de escada para ele subir na cama. No começo ele gostou e se adaptou. Mas desistiu. Ganhou um colchão embaixo da cama, onde se refugiava. Tornou-se um velhinho que gostava de se esconder. Já não se incomodava com os gols e com a virada do ano.  Os problemas no ouvido resultaram na surdez quando ele tinha 13 anos. Em 2010, teve um AVC. Ficou mal, mas sobreviveu. Na lembrança, ligações perdidas da minha mãe quando ele foi levado de emergência para o veterinário. Contudo, um dos momentos mais felizes da minha vida foi quando o vi bebendo água depois do incidente. Disse “o Gugu está melhor! Está bebendo água.” E ele ficou tão bem que na sequência estava brincando com a bolinha. Sem a mesma agilidade, mas com o mesmo amor.

De gravatinha no dia do meu aniversário, em 2010

Apesar de não ser nada tão grave, submeteu-se, pouco antes do AVC, a uma cirurgia para retirada de um tumor benigno nos testículos. Fuçando no meu celular antigo, vejo várias mensagens trocadas com minha irmã: “Vou deixar o Gugu no veterinário. Você o pega na volta?” “Esta semana o Gugu não pode tomar banho, só na outra.” “Tem que comprar um xampu especial para ele.”

Toda atenção era pouca: o cuidado para não molhar a orelha na hora do  banho. A preocupação em levá-lo para passear pelo menos uma vez ao dia. E, principalmente, o nervosismo constante por causa da rixa mortal que tinha com o Kiko, cão que chegou cinco anos depois dele. Não dizem que macho não briga com fêmea? Com ele era diferente. Chegou até a ter uma briga feia com a Tuti. Também tinha birra do Oliver, filhote dela, que era carinhoso e sensível. Mas eram briguinhas bobas. Já com o Kiko era extremamente agressivo. Tanto que os mantínhamos muito bem separados. Sufoco. Tensão. Não há outras palavras para definir o medo de os dois se atracarem até a morte. Felizmente, isso não aconteceu.

Comigo em uma das muitas festas de fim de ano

Porém, ficaram juntos no final. Por muitos dias os levávamos todos os dias para tomar soro. Na maca, de um lado o Goober. Do outro, o Kiko. A Renata, minha irmã, disse que viu ambos darem uma afastadinha. Velhos ranzinzas. Tudo foi feito, mas não aguentaram a idade e a doença. O Gugu se foi num dia, em casa, nos braços da minha mãe. O Kiko, três dias depois, no veterinário. O Carnaval foi silencioso em 2011. Restam as lembranças e a certeza de que ambos nos amaram muito. Saudade de vocês, brigões.

Ainda lembro-me do meu último passeio com o Gugu. Foi numa manhã de sexta-feira. O dia estava ensolarado e muito bonito. Demos uma volta devagar pela rua. Antes disso, ele havia me seguido por toda a casa. Será que queria me dizer algo?

“Vamos, Gugu, corra! Pegue a bolinha!”


Inesquecível





segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

espaço para leitura

Quem gosta de ler sabe o quanto é importante termos um espaço especial para as leituras e para guardar os livros.

Pode ser simples ou sofisticado. O importante é que seja confortável, aconchegante e, principalmente, que seja um motivo a mais para novas viagens literárias.

Separei cinco bibliotecas em casa com as quais me identifiquei. Fica a dica. Para vocês e para mim :-)



Simples e charmosa


Moderna. Mas eu trocaria a cadeira por uma confortável poltrona


Singela. Um cantinho só seu


Clara e espaçosa. Dá até para promover debates literários 


A campeã e minha favorita. Vista para um lindo jardim

terça-feira, 22 de novembro de 2011

parapan e para você

Primeira vez no México. A viagem parece cansativa. Não paro de olhar no painel à minha frente quantas horas faltam para chegar à Cidade do México. São 9.000 quilômetros a serem enfrentados e superados numa minúscula e desconfortável poltrona. Eu penso assim. E assim devem pensar todos os companheiros de jornada. Aliás, centenas deles, que passaram tristemente pela ala dos afortunados da classe executiva. E assim vamos, tentando quebrar essa barreira rumo ao Parapan de Guadalajara.

Reclamamos. Dormimos. E almejamos logo o destino final, que ainda tem mais uma etapa a ser superada: conexão no aeroporto da Cidade do México. Até montanha russa entre um terminal e outro pegamos. Além de elevadores, esteiras, escadas rolantes, corredores. Tudo com malas e uma grande caixa nas mãos. Afinal, por lá não se pode circular com o carrinho de aeroporto que tanto nos auxilia. Lamentamos e pensamos: se é difícil para nós, como será para os nossos atletas, cuja mobilidade muitas vezes, ou sempre, é comprometida?

Chegamos exaustos. Pudera: 15 horas de viagem. Mais uma vez, lembramos dos atletas. E eles, o que fazem enquanto reclamamos de uma dor no pescoço, no ombro ou na perna? Treinam. Treinam. Treinam. E ganham medalhas. Ouro. Prata. Bronze. Há muito tempo deixaram de lamentar por terem nascido cegos, incompletos ou por terem enfrentado algum acidente que deixou sequelas.

Enquanto chegávamos ao hotel e vislumbrávamos uma cama confortável, eles se jogavam na piscina. Calçavam o tênis. Tomavam uma garrafa de água e corriam. Corriam muito. Mais do que os quilômetros  que eu imaginei ter andado dentro do aeroporto do Distrito Federal mexicano.

Com atletas-guias, com ajuda de cadeiras de rodas ou muletas, eles não esperam, e nem querem ou precisam, de olhares de pena. Querem vencer, subir ao pódio e representar o país em que nasceram. Os nossos brasileiros nos Jogos Parapan Americanos fizeram isso muito bem. Ao todo, foram 81 medalhas de ouro, todas legítimas e frutos de muito trabalho, comprometimento e respeito.

Fiquei impressionada com o senso de direção dos meninos do futebol de cinco. Todos cegos e que sabem conduzir perfeitamente a bola. "E ainda fazem gol", como alguém comentou na arquibancada. Assisti a um jogo do Brasil contra o Uruguai e nunca vou me esquecer como a bola grudava nos pés do Jefferson que, conduzido apenas pelo sino que havia dentro dela e dos seus sexto e sétimo sentidos, a levava direto ao campo adversário driblando, inclusive, o goleiro que é “normal”, ou seja, que "enxerga", como também ouvi entre os torcedores.

É assim que tem que ser. Quando nos falta algo, ou parece faltar, a gente se adapta e vai embora. Que o diga a campeã Rosinha, que acumula vários ouros em campeonatos mundiais. Perdeu a perna esquerda num acidente de trânsito. O que parecia ser o fim, foi o começo de uma carreira. Como ela mesma enfatiza, “Deus olhou para mim e disse: vou tirar a perna dessa neguinha para ajudá-la”. Mesmo os céticos passam a acreditar nisso. Quando ganhamos algo com sacrifício, parece que a vitória é ainda mais especial. Ou não teríamos a comemoração eufórica da menina Marivana. “É minha primeira participação num evento assim. É minha primeira vez aqui”, não parava de repetir enquanto fazia poses para fotos com os mais novos fãs, que nem sequer se preocupavam ou observaram sua paralisia cerebral.

Diga-se com orgulho: nossos atletas são queridos. São humildes para comemorar com gosto a primeira conquista. Não hesitam em falar sobre as dificuldades. Uma das cenas que mais me tocou foi a comemoração do ouro por Thierb Siqueira, que não conseguia se segurar diante do pódio. Pulava. Gesticulava. Agradecia. Nossos atletas, quando circulavam pelos estádios, logo eram cercados pelos mexicanos que queriam fotos, autógrafos e mais fotos. Tornaram-se celebridades. Merecem cada aplauso recebido. Para nós, espectadores, fica a emoção de ver a bandeira brasileira sendo erguida ao ponto mais alto 81 vezes e ouvir nosso hino indo direto aos corações de quem ali estivesse. Como dizem os jornais mexicanos: somos a grande potência neste esporte. Mas, infelizmente, enquanto a imprensa estrangeira afirma isso, aqui temos breves notas e algumas imagens de relance. Talvez porque seja bonito mostrar pessoas com deficiência física e mental conquistando medalhas, títulos e reconhecimento. Meus caros, eles não querem compaixão. Querem a vitória. Se você estiver lá para curtir os bons lances e momentos, ótimo. Caso contrário, eles vão ganhar mesmo assim.

Para todos, ficam a lição e a dica: da próxima vez que sentirem dor nas costas por conta de uma longa viagem ou acharem o caminho para a conexão de voos muito sinuoso, não pensem em como os atletas vão percorrer o mesmo caminho, mas no que todos nós precisamos superar para conquistarmos nossas próprias medalhas, mesmo sendo tão “perfeitos”. Aparentemente.


Futebol de 5: Uruguai x Brasil

Rosinha no pódio

Com Marivana

Comemoração de Thierb Siqueira

81 vezes a bandeira brasileira no topo

Hasta la vista

Versão resumida do texto, publicada no Diário do Grande ABC em 27/11/2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

sorteio do livro “um dia”, de david nicholls

Um dia” conta a história de Emma e Dexter durante vinte anos. O enredo virou best-seller e acabou nas telas de cinema. A estreia do filme, aqui no Brasil, está prometida para 2 de dezembro. Enquanto isso, que tal concorrer a um exemplar do livro?

Para participar, basta clicar aqui e se cadastrar para o sorteio. O vencedor será conhecido no dia da estreia do filme.

Boa sorte.






Sorteio realizado em 02/12/2011. A vencedora é Analu Cestino

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

ame o que é seu

Acabei de ler "Ame o que é seu", de Emily Giffin. Um romance sobre romance açucarado. Rápido e fácil de ler. Assim como deve ser todo chick-lit. Sou fã desse gênero desde "Melancia", de Marian Keyes. Dizem que toda leitura tem seu momento. Pode ser que se eu não estivesse passando por uma situação parecida com a da protagonista do livro, o efeito chick-lit não tivesse caído no meu gosto.
                                                                                                                          
Enfim, desde então não resisto a uma capa bonita e aos dilemas de mulheres tidas como modernas e independentes apresentados nesses best-sellers, como casar ou ser independente? Ter filhos ou angariar uma promoção no trabalho? Questões que eu já havia sugerido num texto sobre Comprometida, de Elizabeth Gilbert.

"Ame o que é seu" traz as inúmeras dúvidas femininas logo na contracapa: "Sempre que houver escolha, haverá dúvida." A fotógrafa Ellen está na casa dos trinta e tem o que a maioria das mulheres nesta idade sonha em ter: marido bonito, bem sucedido e apaixonado, apartamento descolado, reconhecimento profissional, uma amiga leal e a perspectiva de muitas coisas boas pela frente.

Só que um reencontro casual com um ex-grande amor, num cruzamento movimentado de Nova York, faz com que ela se pergunte se não estaria acomodada com a sua "situação". Ora, do que ela está reclamando? Por ter se casado e deixado outras preferências de lado? Ou por não ter tentando, mais uma vez, ficar com Leo, que a abandonou há oito anos e em quem não para de pensar após o fatídico esbarrão?

Ouvindo antigas trilhas sonoras e tomando um café com creme, ela relembra a intensidade do relacionamento que tinham e como terminou, sem ela entender direito o porquê. Relembra, ainda, a depressão após levar o fora e como conheceu Andy, o seu marido. Importante ressaltar: todo chick-lit traz a dor de ter sido abandonada e apresenta, seja de forma detalhada, como em Melancia, ou num rápido flashback, o ritual pós-rompimento: desleixo na aparência, baldes de sorvetes sempre à mão, vontade imensa de ficar trancada no quarto e, finalmente, um novo amor. Sabe aquela máxima “amor com amor se cura”? Pois ela se aplica perfeitamente a esses livros.

Seguem os dilemas de Ellen: atender ou não as ligações de Leo? Aceitar ou não as propostas de trabalho que ele oferece? Dizer ou não ao Andy o que está acontecendo? Mudar ou não para uma mansão em Atlanta, cidade natal do marido? Abandonar o que parecia ser uma vida perfeita? Tudo é questão de escolha. E tudo pode ser diferente dependendo da opção assinalada. Em determinados momentos, podemos ficar com raiva da garota que parece ter tirado a sorte grande e que está prestes a dispensá-la. Mas nada muito profundo, assim como também não é profunda a leitura. Bom passatempo para refletirmos de maneira fugaz sobre nossas próprias paranóias.

"A palavra acomodação ecoa na minha cabeça, ferindo o meu coração e me enchendo de incertezas. É uma palavra que venho evitando por meses, mesmo nos pensamentos mais íntimos. Mas de repente eu não posso mais evitá-la. De certa forma, ela é o cerne sombrio de toda a questão, o medo de ter me acostumado ao Andy. De que eu deveria ter resistido a esse tipo de amor. De que eu deveria ter acreditado que o Leo um dia voltaria para mim."



quarta-feira, 26 de outubro de 2011

na pior em paris e londres

George Orwell, no fim da década de vinte, resolveu experimentar a pobreza européia. De sua aventura surgiu “Na Pior em Paris e Londres”. No melhor estilo do jornalismo literário, ele nos conta os pormenores de suas noites e dias convivendo com os amigos que vai conhecendo ao longo da jornada miserável.

Esqueçam as imagens dos pontos turísticos dessas cidades, aqui somos jogados para os porões sujos de restaurantes e quartos frios de albergues. Um dos meus trechos favoritos é quando o autor compara os restaurantes baratos com os chiques. No primeiro, o cozinheiro tira a comida da panela com uma colher e, sem muito trato, a despeja no prato. Já nos restaurantes sofisticados, a comida é cuidadosamente arrumada, cada alimento combinando com o outro e, sempre que preciso, o chef dá o toque final: lambe os dedos para, com eles, dar a ajeitadinha final. Tudo tem que ficar perfeito.

A penúria do autor e de seus companheiros também é gritante. Não são raras as ocasiões em que eles têm que vender, ou melhor, penhorar a própria roupa para garantir um pedaço de pão que servirá de jantar durante a semana. Apesar das brigas, havia cumplicidade quando a coisa apertava. Dividiam os casacos e as migalhas. Com humor e certa indignação, o texto descreve as dificuldades dos moradores de rua, que não podem ficar mais que duas noites no mesmo albergue – hospedaria para os sem-tetos. Para piorar, quem fosse surpreendido dormindo na rua, seria preso. Que fique claro: a pessoa não podia deitar e dormir nas ruas e bancos. Mas podia sentar-se e “descansar”. É quando alguém teve a ideia de, por uns míseros centavos, estender um varal à frente dos bancos das praças. A pessoa sentava, apoiava os braços na corda e tirava poucos minutos de cochilo dos justos e injustiçados, antes que o suporte fosse brutalmente recolhido.

O mais próximo de trabalho digno que conseguiam era de lavador de pratos em hotéis e restaurantes, ou plongeur, como o autor descreve. Trabalhavam mais de quinze horas por dia. Ao fim do expediente só dava tempo para um rápido drinque, quando havia dinheiro sobrando, e um sono de menos de quatro horas. Logo, estavam de volta ao batente. Orwell chega a dizer que eles eram escravos modernos. Embora sejam assalariados, não eram mais livres do que se tivessem sido comprados e vendidos. Ainda assim, é o que os homens da rua almejavam, pois era a garantia de comida, cigarro e um teto – imundo, porém estável. Uma vez no emprego, logo se acomodavam e ligavam o piloto automático da função: lavar pratos, quebrar pratos, dar uma geral no chão, limpar o suor com o guardanapo, fingir que não vê a sujeira no chão, roubar leite e um pouco de comida, lavar mais pratos.

Sem se prender somente à sua experiência, o escritor jornalista recorre às memórias e aos relatos dos companheiros, como o artista de rua Bozo. Após ser soldado na França e na Índia, conseguiu um bom emprego em Paris como pintor de paredes e ficou noivo de uma garota por quem era apaixonado.  Entretanto, como tudo é trágico para essas pessoas desafortunadas, ela teve sua vida interrompida por um ônibus, que a esmagou. Assim, o pobre – literalmente – pintor ficou sozinho e desiludido. Buscou amparo nas bebidas e, entre uma embriaguês e outra, caiu de um andaime na obra em que trabalhava e teve o pé triturado. Sem emprego e com a insignificante indenização do empregador, passou a morar na rua e a sobreviver com as pinturas nas calçadas. Bozo traçava imagens com giz colorido, as pessoas olhavam, poucas davam moedas e, ao fim do expediente, ele apagava tudo e seguia em busca do próximo lugar para dormir. Era exceção. Não se importava com a pobreza e valorizava seu ofício. “Sou o que eles chamam de grafiteiro sério. Não desenho com giz em quadro-negro, como alguns por aí, uso cores apropriadas, as mesmas dos pintores. São caras para danar, especialmente os vermelhos.”

A higiene, por motivos óbvios, fica em segundo lugar. A relação com mulheres, que são poucas neste ambiente, também é rara e quase não chega a ser desejada. Quem nesta situação vai querer se deparar com uma mulher? E a vergonha e autoestima, afinal? Aliás, o orgulho está impregnado. O livro mostra como difícil, para os mendigos, manifestar gratidão.

O livro é instigante. Você quer saber como eles vão conseguir a próxima refeição. O que eles vão vender desta vez? Detalhe: o volume foi recusado por várias editoras e é o primeiro a trazer o pseudônimo George Orwell, cujo nome verdadeiro é Eric Arthur Blair. Orwell ficou conhecido por "1984", que traz a figura do Grande Irmão (Big Brother), e "Revolução dos Bichos". 

Ao que parece, ele superou o medo e repulsa que sentia pelos mendigos após tornar-se um deles. Talvez essas emoções sejam mais fáceis de serem contornadas que a indiferença e desinteresse, sentimentos que temos em relação aos nossos desabrigados e que fazem deles seres quase que invisíveis.

“A questão que levanto é por que essa vida continua, para que ela serve e quem quer que ela continue, e por quê.”


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

o que você prefere?


Por favor, você pode ler esta mensagem?

Favor ler esta mensagem.

Solicito que você leia esta mensagem.

É impreterível que você leia esta mensagem até as 14h.


Qual das quatro sentenças acima lhe parece mais simpática? E qual está mais presente nas suas conversas diárias com os colegas de trabalho?

Pois bem. É comum observarmos em empresas e mesmo nas nossas relações com vendedores, empregadas domésticas, recepcionistas e demais profissionais que, diariamente, nos atendem, certa atitude impositiva.  Parece que todos estão lá para nos servir. Ora, pagamos pelos serviços, somos chefes, estamos num cargo melhor, somos os clientes. Enfim, somos mais e melhores, não é mesmo? Não, não é mesmo.

São muitos os que gostam de dar ordens. Querem ser autoritários e estar, sempre, certos. A tolerância é baixa. Não admitem erros, sugestões, críticas e um tempo maior que o piscar de olho para que suas prioridades sejam resolvidas. Claro que há exagero nessa afirmação. Mas, dessa forma, fica mais fácil identificar certos comportamentos. Contudo, não significa aceitar maus serviços e descasos.  

Todavia, custa muito começar uma frase, na qual vamos solicitar algo, com um singelo “por favor, você pode me ajudar?” Tudo bem que estamos pagando para fulano fazer isso, antes que alguém o diga, mas qual a dificuldade em ser gentil?

A revista Vida Simples lançou uma campanha bem bacana: “O Dia da Gentileza”. Três de outubro foi um convite aos leitores e seguidores das redes sociais a observaram com atenção os aspectos do cotidiano e a forma com que se relacionam com o outro. Foi, ainda, um atrativo para que as pessoas postassem frases ou descrevessem comportamentos gentis que tiveram ou receberam. As respostas foram desde emprestar um cantinho do guarda-chuva e demonstrar carinho gratuito até triplicar a paciência com a mocinha do telemarketing e, simplesmente, agradecer. Sim, o “obrigado” igualmente se tornou raro. São posturas que afetam o mundo inteiro, já que há até um movimento internacional em prol da gentileza, o World Kindness Movement, celebrado em 13 de novembro.

Em compensação, outra expressão passou a ser sinônimo de gente importante, o “não tenho tempo”. Frequentemente, ouvimos “agora não posso”, “agora não dá”, “ando muito ocupada, ocupado”, o que, em outras palavras, significa “você não é importante para mim agora, não é minha prioridade”, “antes de lhe ouvir, tenho que atualizar minhas redes sociais, checar minhas cinco contas de e-mail e dar uma olhada no resumo das novelas.” Para mim, duas coisas são broxantes: chegar super empolgada para falar com alguém e ver uma palma de mão aberta em minha direção dizendo “espere”. Outra é deparar-me com e-mails corporativos mal educados. Concordo, vocês estão certos. Não há tempo a perder, tudo tem que estar pronto antes mesmo de ser solicitado e desculpe-me se esqueci de algo.

Dias ruins todos têm, mas viver assim pode afastar boas pessoas de nosso convívio. Além de tornar tudo mais penoso. Por enquanto, prefiro o aforismo da escritora ruandesa Immaculée Ilibagiza: “se você precisar escolher entre estar certo ou ser gentil, escolha ser gentil."

Fica como reflexão, isto é, se você tiver um tempinho ;-)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

syngué sabour – pedra-de-paciência

Recitar por noventa e nove vezes, ou uma volta no terço, cada um dos noventa e nove nomes de Alá. Cada dia, um nome diferente. No décimo sexto dia de oração, o nome é Al-Qahhâr, o Dominador. E é neste ponto, “em algum lugar no Afeganistão ou alhures”, que encontramos a mulher que cuida de seu homem.

Ele sobreviveu após levar um tiro na nuca. Era considerado um herói por lutar pelos ideais de seu povo, por uma jihad, que o autor chama de guerra santa. Mas, após ser atingido e ficar inválido, é abandonado pela mãe, pelos irmãos e pelos companheiros. Restam-lhe a mulher e suas duas filhas.

Apenas a respiração, sempre no mesmo ritmo, indica que há vida naquele corpo estático e fraco. Os olhos estão abertos, mas nunca piscam. Não lacrimejam. Cabe à mulher a tarefa de pingar de tempos em tempos duas gotas de colírio em cada um deles. “Uma, duas. Uma, duas”. Cabe a ela, da mesma forma, a missão de manter o soro entrando na medida exata em suas veias, dar-lhe banho e, claro, orar para que ele “volte”, seguindo as orientações do mulá.

Presa no ritual conjugal, a mulher se dispersa e, aos poucos, para de proclamar por noventa e nove vezes cada um dos noventa e nove nomes de Alá. Irrita-se por não ter tido a oportunidade de fugir. Irrita-se porque o homem não se recupera. Irrita-se por ele ainda manter-se vivo. Irrita-se por ele nunca a ter ouvido. Ela conheceu o marido somente três anos após o casamento. Como estava em combate, ele foi representado por uma foto e por seu kandjar (em persa, facão) durante a cerimônia. Foi com esses objetos que ela, verdadeiramente, casou-se. Três anos é, igualmente, o tempo que passaram juntos durante os dez anos em que estão casados. Afinal, sempre preferiu a batalha.

Este é primeiro romance de Atiq Rahimi - afegão que saiu de seu país e se refugiou na França na década de oitenta - escrito em francês. Seus textos, como Terra e Cinzas, trazem a guerra e as lembranças tristes de uma vida que é empurrada e estipulada. A obra foi escrita em memória de uma poetiza afegã assassinada pelo marido e, em 2008, conquistou o Prêmio Goncourt, considerado o mais importante para a literatura francesa. Pode-se dizer que é uma doce vingança feminina contra as opressões de certos homens. Em sua ira, a protagonista dispara na direção do marido, que jaz imóvel na cama como uma pedra, todos os seus segredos: lembranças da infância, ressentimentos, desejos delirantes, pensamentos obscenos. Alguns desses segredos podem, inclusive, ferir a honra de seu homem. Ele torna-se sua syngué sabour. Na cultura persa, é o nome que dão à pedra mágica para a qual podemos contar todos os segredos. Até que chega um momento em que ela explode. Quando isso acontece, a pessoa que fez a confissão fica livre de seus tormentos. Al-Sabour também é o último nome de Deus, o Paciente.

“Isso mesmo, é você, é você minha syngué sabour! Vou lhe dizer tudo, minha syngué sabour, tudo, tudo. Até que eu me liberte dos meus sofrimentos, das minhas infelicidades. Até que você, que você...” Ela não conclui a frase.

Syngué sabour, a pedra-de-paciência é um daqueles raros livros que lemos de uma só vez e que tem um desfecho sem ponto final. Seria tudo uma alucinação de quem por tanto tempo teve que cultivar o silêncio? Ou um grande segredo realmente consegue fazer uma pedra despertar e, em seguida, explodir tudo ao seu redor?


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

libertação animal

O paradoxo na relação dos animais com os seres humanos      


No prefácio à primeira edição do seu livro “Libertação Animal”, em 1975, o filósofo australiano Peter Singer chama a atenção para a "tirania de animais humanos sobre animais não-humanos". Para ele, "a dor e o sofrimento dessa prática são apenas comparáveis aos que resultaram de séculos de violência de seres humanos brancos sobre seres humanos negros. A luta contra ela é tão importante quanto qualquer uma das disputas morais e sociais que vêm sendo travadas em anos recentes." Trata-se de uma afirmação que abre uma série de discussões entre aqueles que veem os animais como seres que têm sentimentos, e que por isso merecem ser respeitados, e os que creem que os bichos são seres inferiores e que devem servir ao homem. No meio do debate, temos quem defende os animais; mas somente até a próxima refeição.

Com efeito, condenamos a tortura de alguns animais. Cachorros, gatos, cavalos e animais selvagens, quando vítimas de maus-tratos, podem virar notícia. A sociedade ocidental repudia o hábito de coreanos de comer carne canina. Touradas, rodeios e farra do boi são alvos fáceis de protestos que atraem a atenção dos veículos de comunicação.

Por outro lado, os animais nunca estiveram tão presos às necessidades dos seres humanos.  Matéria de capa sobre vegetarianismo, publicada em abril de 2002, na revista Superinteressante da editora Abril, traz a vaca como um ser onipresente. O texto elenca todos os produtos oriundos desse animal morto. São materiais de couro, seda, filmes fotográficos e até extintores de incêndio, que trazem substâncias retiradas dos pés dos bois. Seu sangue também é sugado e transformado em tintura, e sua gordura pode ter como fim o pneu do carro que os defensores utilizam para ir às manifestações. Enfim, de acordo com a matéria é praticamente impossível, mesmo para os vegetarianos, viver sem digerir ou utilizar restos mortais dos bichos, em especial dos bovinos.

O tema estimulou Singer, que se debruça sobre questões éticas, a escrever o manifesto “Libertação Animal”. Lá, ele analisa, filosoficamente, esse paradoxo e propõe um movimento que coloque fim no preconceito do ser humano em relação às outras espécies. O principal argumento é que os animais não existem para servir aos homens. A superioridade que o ser humano pensa ter em relação aos outros seres é definida pelo autor como especismo, termo que compara ao racismo - preconceito aos indivíduos de outras raças - e ao sexismo - a discriminação sexual com as mulheres. Os animais devem ter os mesmos direitos concedidos aos seres humanos, uma vez que também sentem dor - física e psicológica. A crueldade com os animais não pode ser eticamente justificada, o que se constitui numa boa razão para reverter as práticas que as perpetuam. Pensamento que tem raiz no utilitarismo, do qual Singer é seguidor: proporcionar prazer, evitar a dor.

A manifestação teve grande repercussão no mundo inteiro.  O livro chegou ao Brasil em 2004, pela editora Lugano. Ganhou outra versão em 2010 pela WMF Martins Fontes, com novo prefácio e alguns acréscimos.

Em trinta e seis anos de proliferação dos seus argumentos em prol dos animais, é possível enumerar conquistas dos quais ativistas se orgulham, mas que ainda estão longe da utopia de Peter Singer, que é a total independência dos bichos.

 “Eu adoro animais”, ela começou.
 “Tenho um cachorro e dois gatos, e eles se dão às mil maravilhas. Conhecem a Sra. Scott? Ela dirige um pequeno hospital para animais de estimação doentes...”
e continuou a falar sem parar. Parou enquanto o chá era servido, pegou um sanduíche de presunto e perguntou-nos que animais de estimação tínhamos.


terça-feira, 27 de setembro de 2011

um dia

“E assim Emma Morley voltou para casa sob a luz daquele final de tarde, deixando uma trilha de desilusão no caminho. O dia estava esfriando, ela tremia e sentia algo no ar, um inesperado arrepio de ansiedade percorrendo a espinha, tão intenso que a fez parar por um momento. Medo do futuro, pensou.”

15 de julho é o dia em que Emma e Dexter ficaram juntos pela primeira vez. A partir deste gancho, o autor retoma vários outros 15 de julho numa história entre duas pessoas que dura quase vinte anos. Ora juntos, ora separados, eles nunca perdem o contato e a lembrança daquela noite, logo após a formatura. Era uma época de planos, ideologias, sonhos e resistência a tudo que não estivesse de acordo com o que vislumbravam. Ela, salvar o mundo por meio de gestos e palavras. Ele, viajar, curtir a vida e ter uma carreira bem sucedida e rica.

Os anos passam. Metas são revistas por conta das adversidades que não foram contabilizadas durante a universidade. Por vezes, a vida mostra-se tensa, impertinente, embriagada, cheia de traições, de votos nulos e de empregos medíocres. Mas há os momentos felizes, agarrados e guardados para serem utilizados quando as incertezas viessem.

Ainda assim, a felicidade do outro é muito difícil de ser digerida, fica engasgada e tudo o que se consegue dizer é um soluçante “fico feliz por você”. Um desses momentos é quando Dexter anuncia o casamento com outra mulher. Ou quando Emma consegue, enfim, realizar parte de seu sonho de ser escritora. Por que não ficam sinceramente contentes com o sucesso do amigo, da amiga? Porque o dia 15 de julho de 1988 ainda está presente, com todo o seu envolvimento e mentiras inocentes. Simplesmente porque essa felicidade não está sendo compartilhada pelos dois, simultaneamente. Porque eles não estão, de fato, juntos.

Mas e se um dia pudessem ficar com o grande amor de suas vidas? Os êxitos seriam comuns e a existência melhor? É disso que trata “Um Dia”, best seller de David Nicholls, que já virou filme.
Ao começar a leitura, lembrei-me de outro best seller que também fala de desencontros amorosos, o “Querido John”, de Nicholas Sparks. Mas ao contrário de “Querido John”, que traz um amor adocicado e declarado, “Um Dia” expressa a paixão velada, encoberta pelo sentimento de amizade, por sucessivas frustrações e questionamentos em torno de “e se um dia eu pudesse ser melhor?” A leitura, rápida e convincente, nos suga para um final com o qual não queremos nos deparar. E não basta mais que um dia para mostrar que tudo pode se transformar completamente. Contudo, sem apagar o que realmente nos importa, quem realmente importa. 

“O futuro se estendia à sua frente, uma sucessão de dias vazios, cada uma mais desanimador e compreensível que o outro. Como iria preencher todos eles?” Em e Dex. Dex e Em.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

fúria

As aventuras de Little Brain: a fúria do consumo

"A cidade fervia de dinheiro... a moda nunca estivera tão na moda... lojas, representantes exclusivos, galerias batalhavam para satisfazer a estonteante demanda por produtos cada vez mais recherchés” (Fúria, Salman Rushdie)

Malik Solanka é um professor de história que desiste de sua carreira acadêmica e passa a se dedicar a um hobby adquirido anos antes: a confecção de bonecos de madeira. Uma rede de TV inglesa resolve investir na idéia e lhe concede a oportunidade de um programa sobre a história da filosofia. O que Solanka não esperava era que uma de suas criações fosse conflitar com seus ideais. Little Brain, a simpática boneca concebida para comandar um talk show que recebia grandes pensadores, havia caído nas graças da grande massa, atingindo um sucesso avassalador de escala mundial. Seu caráter questionador inicial abriu espaço para a flexibilidade natural do estrelato, adaptável aos anseios do público. Este resultado foi mais do que suficiente para que o criador entrasse em choque com sua própria realidade. Como enfrentar a fúria que o dominava cada vez mais, fazendo-o perder a razão? Poderia ele livrar-se da filha desnaturada? A fuga parece ser a melhor alternativa. Seu destino: Nova York, o coração econômico, cultural e multiétnico da América.

Este é o cenário em que se desenvolve o livro "Fúria", de Salman Rushdie. A história aborda o século 21, dominado por bonecos massificados, que a cada dia ganham novos rostos, novas personalidades, novos ideais. Uma rotatividade essencial para garantir a sobrevivência quando o "novo" é aclamado como rei. "Fúria" nos remete à Indústria Cultural, que invadiu o nosso cotidiano. Theodor Wiesegrund Adorno, filósofo, sociólogo e musicólogo alemão, a definiu muito bem: "Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo.”

Adorno conceitua produção cultural a partir do momento em que ela é inserida nas massas e, conseqüentemente, na reprodução em larga escala. Para ele, a Indústria Cultural neutraliza as pessoas, impendido-as de pensar sobre sua própria condição social. Suas várias forma de expressão, seja por meio da televisão, cinema ou música, entre outras, consistem em um sistema manipulador que não atinge somente o receptor, mas que influencia também os criadores. A obra de arte se transforma em mercadoria, como aconteceu com a boneca intelectual do professor Solanka. A Globalização atinge a produção cultural fazendo com que a "cultura" seja freqüentemente modificada e os artistas percam o controle de suas criações.

Little Brain foi fruto de uma visão pessoal. Representava o conhecimento, percepção e interpretação do mundo sob a ótica de Malik Solanka. Quando a levou para a televisão, seu objetivo inicial era levar à população um pouco de história e filosofia. No entanto, sua criação foi além desta premissa. Tornou-se um objeto cultuado pelas massas. Isso exigiu algumas adaptações na estrutura do programa, de forma a satisfazer as necessidades audiovisuais dos telespectadores.

"Malik Solanka assistiu a tudo isso de longe com crescente horror. Essa criatura de sua própria imaginação, nascida do seu melhor e mais puro empenho, estava se transformando, diante de seus olhos, no tipo de monstro de espalhafatosa celebridade que tão profundamente abominava." (Salman Rushdie, página 119)

Para Adorno, o consumidor não é rei, como sugere a Indústria Cultural. Os produtos não são adaptados segundo estilos individuais. Não é o receptor quem dita as regras do que deve ou não se tornar um produto de massas. "O consumidor não é o sujeito dessa indústria, mas seu objetivo". Trata-se de um mero coadjuvante de um filme que tem como ator principal o lucro, fabricando uma falsa identidade do indivíduo com o universal, dando a errônea impressão de que as pessoas identificam-se com os produtos culturais.

Entretanto, há outro ponto a ser considerado. Se por um lado existe uma indústria manipuladora e atenta a todos os detalhes que possam fazer de uma mercadoria algo massificado, por outro, encontra-se um público desmotivado para seguir seus verdadeiros princípios. O conformismo, também citado por Adorno, que faz com que as pessoas aceitem a realidade como ela se apresenta, é o grande responsável pelo domínio imperialista. A partir desta fraqueza e falta de iniciativa, o público tende a consumir tudo o que lhe é imposto. Em tal contexto, é muito mais cômodo esticar os braços e agarrar algo já pronto, e que não exige grande habilidade de manuseio ou riscos aparentes, em vez de disponibilizar um tempo extra para leituras mais profundas, pesquisas e ensaios de uma consciência mais crítica em relação ao que acontece ao redor.

Sem ocupar-se dos mesmos problemas, o pensador alemão Friedrich W. Nietzsche já descrevia perfeitamente no fim do século 19 esse comportamento. Em "Assim Falou Zaratustra - Um livro para todos e para ninguém" ele, sem saber, prevê o papel desempenhado pelos consumidores do século 21. "Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.”

Um século antes, Nietzsche já nos deu o perfil do consumidor apático que busca entretenimento fácil e sem questionamentos. Que não gosta de ir ao cinema para pensar. Que gosta apenas de programas sensacionalistas. Que não escolhe livros com mais de cem páginas, letras pequenas e sem imagens. Do consumidor que associa o lazer a um momento em que devem apenas relaxar, e sempre na mesma direção que os outros.

“Vede! Eu vos mostro o último homem. 'Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?' - Assim pergunta o último homem, piscando o olho... Quem, ainda, deseja governar? Quem, ainda, deseja obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas. Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio. 'Outrora todo o mundo era doido' - dizem os mais sutis, piscando o olho.” (Friedrich W. Nietzsche, página 34)

Infelizmente, o "último homem" não é exclusivo da obra do filósofo alemão, que tem em seu Zaratustra - inspirado inversamente no Zaratustra histórico, profeta iraniano do século VII e grande moralista - um promotor de uma completa transformação cultural, que despreza o conformismo e prega a criação, a espontaneidade e a arte como características essenciais da nova cultura.

Na verdade, esse indivíduo desprovido de motivação é mais real que nunca. Encontra-se agora diante de um aparelho de televisão vendo o noticiário camuflado. Está ouvindo o último "hit" das paradas de sucesso. Está lendo o caderno de atualidades do jornal de sua cidade. Esta, de uma forma ou outra, comprando uma das “novidades” apresentadas por Little Brain.

“Dia a dia, foi se tornando uma criatura do microcosmo do entretenimento, seus clipes musicais (sim, ela agora era cantora!) mais sensuais que os de Madonna, suas aparições nas premières super-huleyando toda starlet que já pisou o tapete vermelho num vestido perigoso. Era estrela de videogame e capa de revista, e tratava-se, não esqueçam, quanto à sua aparência pessoal, pelo menos, de uma mulher cuja cabeça ficava completamente escondida dentro da cabeça da boneca irônica.” (Salman Rushdie, página 119)

O poder do questionamento foi minimizado numa era em que a padronização determina as tendências. Qualquer indústria vai lançar um produto sabendo que há um público interessado. E para as mercadorias com essas características de fácil assimilação, hoje, temos um grande número de adeptos.

A boneca do professor Solanka chegou ao sucesso por meio da televisão, principal forma que o neoliberalismo, definido pelo professor e pesquisador norte-americano Robert W. McChesney como "o conjunto de políticas nacionais e internacionais que exigem a dominação empresarial de todas as questões sociais com mínima forma de reação, encontrou para se propagar. A televisão revela, estimula, molda, conquista. "Com os valores neoliberais, a televisão que foi uma reserva não comercial em muitas nações, tornou-se repentinamente sujeita à evolução comercial multinacional. Ela está no centro do sistema de mídia global emergente.” McChesney defende a mídia comercial e os mercados de comunicação como as grandes parceiras das políticas neoliberais, responsáveis pela Indústria Cultural e manipulação em massa.

O mesmo pensamento é compartilhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que aponta a televisão como a vilã dos meios de comunicação, que põe em risco à população e todas as esferas da produção cultural, artística, literária, científica, filosófica e até judiciária. Ela expõe ao perigo a vida política e a democracia ao visar, sempre, os altos índices de audiência. Bourdieu fala, ainda, de um controle político, sobretudo pelos verdadeiros donos da televisão, em muitos casos as grandes organizações. Isso faz com que certos assuntos sejam proibidos a fim de não ferir a imagem dos reais patrocinadores das emissoras.

As grandes fusões e aquisições na mídia global resultam em gigantes conglomerados. Isso faz com que as indústrias específicas de mídia se tornem cada vez mais concentradas nas mãos de poucos controladores. Para McChesney, uma verdadeira ameaça à democracia, que se encontra diante do esvaziamento da cidadania e da política consciente em busca do poder, lucro e ascensão de raros privilegiados. Neste universo, "a verdadeira força motriz tem sido a busca incessante de lucro que marca o capitalismo, e que fez pressão em prol de uma mudança para a desregulamentação neoliberal. Na mídia, isto significa o relaxamento ou a eliminação de barreiras à exploração comercial e à propriedade concentrada dos meios de comunicação."

No entanto, Bourdieu chega a insinuar que a manipulação acontece sem que os envolvidos tenham consciência do que se passa. É a “mentalidade-índice-de-audiência”, que atua inconscientemente ao exercer uma forte pressão econômica ou, o que o sociólogo chama de violência simbólica: “que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e, também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”

"Em fins dos anos 70... A indústria da cultura, nas décadas seguintes, tomaria o lugar da ideologia, passando a ser 'primária' no sentido em que a economia costumava ser, gerando toda uma nova nomenklatura de comissários culturais, uma nova raça de burocratas em grandes ministérios de definição, exclusão, revisão e perseguição.” (Salman Rushdie página 32)

Ainda dentro desta ótica, podemos afirmar que a Indústria Cultura coloca à disposição uma mercadoria feita de impressões, sensações e que tende a ser cada dia mais gratuita, pois é paga pela publicidade.  Para McChesney, esta dependência de anunciantes, associado a um quase monopólio do sistema de mídia global tem um outro agravante: a violação da imprensa livre e neutra. "O ataque à autonomia profissional do jornalismo é apenas a parte mais evidente da transformação neoliberal da mídia e das comunicações. Todos os valores e instituições de serviço público que interfiram na maximização do lucro estão no paredão". O autor norte-americano complementa sua idéia citando o declínio da televisão pública em todo o mundo, fenômeno que pode ser observado perfeitamente no Brasil.

O jornalismo também é atacado por Bourdieu, que o descreve como um depósito de notícias de variedades dentro de uma sociedade em que “o sangue e o sexo, o drama e o crime sempre fizeram vender.” São notícias que elevam o índice de audiência e que distraem: os fatos-ônibus, assuntos de interesse comum, que não envolvem disputa e que geram consenso.

Como sempre, as verdadeiras vítimas são as classes menos favorecidas, norteadas por uma política fraca e ineficiente, caracterizada por um alto grau de despolitização e que não tem nas tradições e costumes uma barreira no caminho do lucro e poder. Nestes casos, a solução é simples, conforme explica McChesney: "Quando as platéias parecem preferir a produção local, as empresas de mídia global, em vez de fugir em desespero, globalizam sua produção".

Foi justamente esta manipulação, regada a um capitalismo agressivo que impõe regras, pensamentos e costumes, que casou a fúria do professor Solanka, nosso ponto de apoio para abordar a Indústria Cultural. Sua criação torna-se insuportável para seus olhos e sentimentos. A simples presença de uma boneca, escondida em um quarto, é a gota que faltava para que o oceano de angústia do professor transbordasse, quase culminando em um duplo assassinato. Para aqueles que não leram o livro, faremos uma alusão metafórica ao quase fim da consciência e essência do criador. Ele estava se transformando definitivamente no "último homem" ridicularizado por Nietzsche. Felizmente (ou não), ao "piscar o olho" foi tirado do transe no qual se encontrava e levado a uma avaliação mais crítica de seus atos e pensamentos. Para entender melhor essa situação não poderia entrar para melhor escola: Nova York, a mais perfeita representação do imperialismo moderno, que muito terá a ensinar e a enfurecer o personagem principal da obra de Salman Rushdie. Para conhecer o que o aguarda e como a história termina, não percam os próximos capítulos.

"Ele sentiu a velha raiva brotar de dentro enquanto ela falava, a imensa, insaciável raiva de Little Brain que permanecera inexpressada, inexprimível, todos esses anos. Era essa raiva que havia levado diretamente ao episódio da faca... Fizera um imenso esforço para esconder isso. Estava no primeiro dia de sua nova fase. Hoje não haveria névoa vermelha, nem tirada obscena, nem apagamento de memória induzido pela fúria. Hoje encararia o demônio e lutaria com ele até jogá-lo na lona. Respire, disse a si mesmo. Respire" (Salman Rushdie, página 111)


Referências bibliográficas
ADORNO, T.W. - Adorno. São Paulo, Editora Ática, Col. Grandes Cientistas Sociais 54, 1986.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. São Paulo, Jorge Zahar, 1997.
McCHESNEY, Robert W. - "Mídia Global, neoliberalismo e imperialismo" in Dênis de Moraes (org.) Por uma Outra Comunicação. Bauru, EDUSC, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich W. - Assim Falou Zaratustra - Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 9ª edição, 1998. Tradução de Mario da Silva.
RUSHDIE, Salman - Fúria. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.